quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Artes do ofício

Toda sensibilidade é uma flor
Uma flor com "olhos de ressaca"
Cujas pálpebras - dizem - sentem o peso do mundo:
Todos os tons, desnecessárias dores e impetuosidade...
daqueles duros asfaltos.

Toda sensibilidade é uma flor
Flor com gosto de água e textura de vento
Daqueles de onde ecoam sempre o mesmo questionamento:
"Afinal, por que tantas folhas sem árvores?"

Toda sensibilidade é uma flor
Mas flor antissocial, cuja tortura não é outra senão as batidas do
lado de fora da janela.

Mas, vá lá... que é verdade: toda sensibilidade é uma flor
De tentáculos fortes e obstinados
Cujo sufocamento destrói vestígios de qualquer fantasia.

Todo pássaro, por sua vez, é um vetor
De sementes infecundas
Donde brotam verdades, uma das quais, em noites áridas teima em
sussurrar:
"Tolo és tu, que crê em maremotos, lembranças coloridas e risos
remotos! Quer que diga mais?"

Toda sensibilidade é também um condor
Que sobrevoa, orgulhoso, as nuvens
Mas despenha inevitavelmente!...

Enfim, toda sensibilidade é uma dor
Reconfortante e conformadora.
Porém, basta de controvérsias e terminações intangíveis!
Pois que a sensibilidade tem mesmo um princípio, mas cujas vaidades
não permitem nortear.

E assim, como era de se esperar, cá estou...
Valorizando o trivial
E ludibriando o que me seria (mesmo?) essencial.

Ora, pois... se toda sensibilidade é uma flor
Não é senão uma ou outra coisa...
Sobretudo, a insensibilidade que incessantemente temeu ser.

Quanto a isso, nada posso..
                   Nem mesmo há o que tecer.

Daysi, verão de 2014

Concreto

Ah, esses prédios cinzas vestidos de terno
Cujo mármore da pele refrigera seus espíritos etéreos
Conservam, tijolo a tijolo, o mesmo padrão gélido.

Ah, esses prédios ternos vestidos de cinza
São todos perfeitamente iguais:
Tanto concreto, tantas vidraças, tanta imponência... e sua solidão retilínea.

Ah, esses prédios gélidos cheirando a cinzas
Que tanto invocam Le Courbusier...
De tão frios, diria que por todos passa um mesmo rio.

Ah, esses prédios de cinzas cheirando a terno
Sua penumbra é entranhada em suas salas mudas -
as mesmas salas fundas que padronizam mundos.

Ah, esses ternos cinzas vestidos de prédio...
Os ventos cortados por tais monumentos
Choram suas vitórias, martírios e tormentos.

Ah, esses mesmos prédios... de janelas vagas e fumês
Dão forma, vigiam, fumam - e findam o mundo:
Da tinta fresca de suas paredes à firmeza de seus alicerces
São todos... todos cinzas e vestidos de terno.

Daysi Pacheco, inverno de 2014.

Descortinar



E ele vinha tropeçando no vento e fitando o tempo,
Como quem espia através de uma cortina imaginária
todos os idos da sua idade.

Desafiando a gravidade canônica, os cabelos de neve fumaça
Eletrocutavam-se no ar
A coluna, como que espartilhada por ondas marinhas,
Dançava o seu corpo, com três passos para trás.

E ele olhava o outro lado da rua
Como que em um momento crucial da sua existência:
Uma outra calçada - tal qual terceira margem do rio.

E, ao coçar os cabelos com os dedos,
Uma nuvem de pensamentos enfumaçava a sua alma:

Ah vida!... Grande artista pós-moderna.

À lápis
Lapida
A lápide
Do eterno.

E seguiu, como quem conhece bem o amanhã.

Daysi Pacheco, Primavera de 2014

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Divagações temporais (ou de temporais)

Vento zombeteiro, com sua empáfia, me range os dentes.
E, ao som de um presto, lança sobre a terra um coro de vozes acusadoras.
"É um prelúdio do Apocalipse". Penso.
E, no meu cubículo, aninho-me em meus velhos pensamentos.

A tempestade sempre foi um passaporte de viagem ao passado, direto aos medos recalcados da criança que outrora fui.
Sendo assim, fantasmas e demônios sussurram-me temores absurdos: "cá estou a buscar-te no dia do Juízo Final".
E São Pedro, sem piedade, estraçalha todas as baratas que andam pelo seu chão.

A tempestade, por sua vez, dissipa qualquer sombra de dúvidas: já é chegada a hora.
E a noite inesperada joga, com amargura, sua manta empoeirada sobre a tarde.
Os gatos - ingênuas criaturas - brincam animadamente pela casa, como se nada soubessem.
Engano meu. Para a surpresa humana, os gatos já conhecem a impetuosidade dos ventos. E olham desdenhosamente, como quem diz: " esses humanos imbecis não sabem de nada!"

De relance, meu passado brilha intermitentemente como um letreiro de hotel barato. Recomeço, então, a dramatizar a vida, pensando nos fantasmas, nos demônios, no Juízo Final...
E me entorpeço com o pensamento do quão bom é dramatizar a vida, da qual o fim orquestrado já é conhecido. Tão monótona por assim ser, uma tempestade e outras coisas são nada mais que acidentes de percurso.

A própria chuva é um drama para o qual são enviadas várias entidades. O vento abre a ópera com a sua orquestra de vozes, seguido de recitais entre trovoadas e relâmpagos. A chuva é sempre a solista, acompanhada pelo coro.
Um silêncio repentino rouba presunçosamente a cena, ao cessar do presto da tempestade. E quando tudo parece estar se acalmando, os céus mostram que ainda não terminaram de chorar as m'águas que impregnam as nuvens. E todo o drama recomeça.
Dessa vez, um acesso não tão explosivo como o de outrora. Mas um choro lento e quente: daqueles que remoem as dores. Sem ser, desta vez, anunciada pelos ventos, a chuva segue, aconchegante, entoando uma elegia a cappella. Melancólica e tediosa, mas não menos temperamental.
Assim, outros atores entram em cena, enquanto desconfio que o céu está se avermelhando. Ao som de um profundo noturno, as últimas gotas d'água caem aos poucos, como que espalhadas por delicadas bailarinas.
E, lentamente, o silêncio chega, dessa vez, efetivo, como um aplauso que se definha no telhado vizinho.
Como uma cortina, a brisa finaliza o espetáculo, logo após os cumprimentos dos fantasmas, dos demônios, do Juízo Final... e dos outros envolvidos.

Um miado pacificador dissipa, então, toda a minha inútil divagação. "Pronto, humano, a chuva já se foi." E, meticulosamente, a criatura continua lambendo a sua pata, enquanto o dia chega novamente pela janela.

Daysi Pacheco, durante uma tempestade de verão de 2014.

Dezesseis anos


Cheiro de mofo e cigarro em véu de anágua antiga
Um mero objeto de cena teatral.
E a vida florescia com impetuosa vontade do novo
Vida anoitecida, vida aturdia: apenas vida.

O prazer em retomar o passado é o gosto do improviso
Assim o é a juventude: o véu remendado e reinventado à luz das paixões.

Daysi Pacheco - verão de 2014.

Claustrofobia



Sufocam-me os pesados ares da objetivação.
Para que então teces tais montanhas e colinas em vão?
Se soubesses que assim entrega-me tamanha perturbação...
Não cometerias tais paradoxos por tentação!

Quisera eu viver por mim... em mim...
E, por assim dizer, tangenciar os fatos sem elegias.

Ai de mim ser grande jogador
E, a despeito do que é torto,
brindar esplêndida razão...
Ai de mim escoar sem medo essas águas em profusão!

Se soubesses ao menos que enaltecer tamanha decadência é mentir aos pássaros,
não te arriscarias a pintares aspirais no chão.
E qual o sentido de falar ao acaso - por descaso?

Em teu mundo, tal qual "período das luzes", pairam e bailam
vaga-lumes.
Mas fato é que, cá no meu confinamento, mariposas embaçam,
zoam e esvoaçam o tempo.

Sendo assim, ouve-me, mas não te ofendas:
Há empecilhos demais em meu cubículo.
E nada há que se possa fazer.

Daysi Pacheco, verão de 2013.

Carne seca



Inveja tenho é das minhocas,
que cavam um túnel com propósito... de auto-preservação...
Mas, ora...que o seja!

Nada demais a tecer.
É que quando o inverno não faz sentido
E o ardor juvenil já não incendeia meus edifícios,
Sufocam-se as palpitações... de sei lá o quê.


E nem mesmo as flores pintadas de sangue têm cor:
Ah, já nem me causam tanto rancor.

Basta! Talvez seja esse o curso do rio:
Sem terceira margem ou rito de passagem.

Talvez existir não passe de uma miragem de um futuro de torpor.
E, lá no fim de tudo, reste - sim - um corpo.

Mas, veja bem... veja mesmo muito bem...
Corpo talvez haja... porém, sem alma, sem memórias, sem intuições:

Apenas parestesia.

Eis, talvez, o hilariante propósito de tudo.

Daysi Pacheco, verão de 2013.